sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Ressentimento e grupo: Uma anedota para se entender o comportamento político

 Sabe aquele ditado: “os inimigos dos meus inimigos meus amigos serão?”. É sobre isso que se trata o ressentimento político que afeta o comportamento da maioria dos eleitores brasileiros.

 

Todos nós sofremos com inúmeros complexos. A rejeição, apesar de ser uma ilusão, como eu costumo falar, também provoca uma dor, e essa dor não é ilusória.

 

Estamos todos querendo ser validados no auge do nosso narcisismo, através dos nossos atributos, que obviamente consideramos bons, belos e morais. Ora, são os nossos atributos que constituem nossa identidade.

 

Somos seres sociais, mas bastante solitários. Não nos damos conta mas o advento das redes sociais que nos possibilitam expressar nossos sentimentos, desejos e visões de mundo é bem recente.

 

Vivemos em uma sociedade extremamente hierarquizada e autoritária. Eu, embora me considero um pouco novo, faço parte de uma geração que foi silenciada na escola. Que não tinha direito a ter opinião formada. Que não tinha direito ao questionamento. No meu tempo de escola, era comum professores fazerem bullying com alunos questionadores, com direito a humilhações em público.

 

As redes sociais nos aparecem como um oásis no deserto. Nós, que no geral, não fomos educados e educadas para aprender como nos relacionar, como fazer amigos, como manter boas relações. As redes sociais nos aparecem então como uma excelente oportunidade para procurar um bando, para ir até outros bandos, para expressar nossa opinião, nossa visão de mundo, o que achamos sobre algo.

 

Nossos comportamentos ainda são tão primitivos...Quando entramos num bando (grupo de Whatsapp, página de algum influenciador que pensa diferente, grupo no Facebook, Twitter etc) e não nos comportamos de acordo com o que o bando espera, somos massacrados, expulsos, cancelados, ofendidos e não é porque está acontecendo no meio virtual que isso doa menos ou simplesmente não doa. Que isso não mexe com traumas relacionados à rejeição.

 

Sei que nos achamos muito especiais mas somos animais, tá gente? Quando um animal de outra espécie entra num bando de outra espécie, ele é presa. Os animais vão se defender dos invasores, assim como nós em nosso meio social também fazemos.

 

Lembram do filme O Rei Leão? Scar é um ressentido. Ele é expulso do seu bando. Ele queria ser o Rei da Selva mas ele não tem os atributos necessários. O que ele faz? Vai buscar apoio no bando inimigo. As hienas que também odeiam o bando que o rejeitou. Scar faz alianças políticas com o bando igualmente rejeitado e desprezado pelo bando que ele fazia parte. Essa é a nossa vida social e política.

 

Simba também é um ressentido. Apesar de não ter sido expulso do seu bando, ele sabe que não agiu conforme o esperado. Simba foge de seu bando e encontra amor e acolhimento em outro bando, que não partilhava da mesma natureza que ele: caçador. Mas o poder do acolhimento do bando é tão forte, mas tão forte, que Simba, um leão, vira herbívoro para fazer parte daquele grupo.

 

O que Scar e Simba têm em comum? Ambos são ressentidos desejando o poder.

 

Vamos buscar estar em grupo que nos acolha. Se temos apenas um traço de comportamento parecido com o grupo no qual passamos a pertencer, o grau de afeto que desenvolvemos com tal grupo vai fazer com que a gente queira proteger esse grupo. Que queiramos pertencer por completo a esse grupo. Nos fundir a ele. Quanto mais acolhimento, reconhecimento e identificação estabelecemos com um grupo, mais seremos capazes de fazer qualquer coisa para preservá-lo. Inclusive defender líderes que se apresentem igualmente como “um dos nossos”, ainda que eles sejam repletos de contradições. Porque isso não importa. O que importa mesmo é a busca pela preservação.

 

A neurociência explica muito bem a influência de grupos em nossos comportamentos, em nossas tomadas de decisões, em nossos posicionamentos. É perto dos bons que nos tornamos melhor. A nossa tomada de decisões é influenciada pelo ambiente e pelas nossas relações interpessoais. O comportamento decisório de um indivíduo é autoadaptativo, resultante da interação entre o indivíduo e o ambiente em que ele está inserido.

 

A coisa mais perigosa que pode nos acontecer é nos fecharmos em um grupo específico. Nossa identidade fica fixa e ficamos repletos de pontos cegos. Porque a tendência será sempre de enxergar a alteridade como inimiga. O fundamentalismo anda lado a lado com o comunitarismo.

 

A única forma de trabalharmos a nossa ignorância é nos abrindo ao desconhecido. É o contato com o novo que nos faz perceber a nossa própria ignorância. E é apenas no reconhecimento da nossa própria ignorância que podemos nos movimentar para tentar para tentar compreender a realidade, como uma criança surpresa tentando desvendar  aquilo que ela vê.

 

Sabe aquela feminista que virou anti-feminista? Aquele tio comunista que virou bolsonarista? Aquela direitista ferrenha que virou lulista? Conheço todas essas pessoas e todas elas tem em comum a mesma coisa: caíram no amparo do grupo que antes era rival. Ah, sabe o que é cancelamento? É a expulsão do grupo. Mas hoje é a política de maior coerção social.

 

Por que as pessoas acreditam em fake news e compartilham mesmo assim? As pessoas estão dispostas a qualquer coisa para proteger seu ideal de verdade. Em Outras épocas, a gente se matava em praça pública. Mentir sem receio me parece até mais civilizado (risos). Me choca menos para falar a verdade.

 

Não existe política fora da pedagogia. A política não se resume a defesa do partidarismo. A verdadeira política é a prática pedagógica para educar seres humanos a exercerem sua própria humanidade a partir da autonomia. Na arte da pedagogia, o bom exemplo e o acolhimento é o que possibilitam seres humanos a serem gentis e responsáveis. Serve para crianças e também para adultos.

sábado, 20 de novembro de 2021

Perfectíveis sim. Perfeitos não

Hoje em dia quase ninguém erra. São tão perfeitos. São tão incríveis. Tão vencedores. Tão evoluídos. Tão exemplares. Sempre com um conselho na ponta da língua. Sempre com uma opinião formada sobre tudo. 

Eu sinto falta de pessoas reais. Sinto falta dos que confessam as falhas e os medos. Sinto falta das pessoas que sentem e demonstram. Sinto falta de quem ainda está aprendendo. 

Pessoas artificiais me desinteressam. Há um brilho único naqueles que vestem apenas a humanidade. Há uma beleza incomparável naqueles que não se escondem na mentira da perfeição.

sábado, 5 de junho de 2021

Ameaças abjetas

Aí ele me disse: “Vamos em frente”. Então pensei com aquele ceticismo que me caracteriza às segundas-feiras: “Não vai dar”. Assim mesmo, entre aspas. A vizinha estava ouvindo Jorge Drexler e Gal Costa cantarem “Negro amor”. Alguém falou que Drexler é superestimado e eu discordei. Mas não era comigo que falavam. Isso de se meter na conversa dos outros não é comigo. Eu estava saturado do ódio nas redes sociais e da passionalidade que nos domina depois da queda do ideal da racionalidade. Ser racional hoje é quase feio. Um escritor racionalista toma pau.

Nesse momento um cara falou: “Ferrou. Aceita que dói menos”. De que estavam falando? Quem eram eles? Por que riam quando me olhavam? A mulher filosofou: “Só nos resta matar o tempo com algo diferente. De resto, isso é a vida. Tentar matar o tempo com algo divertido, né?” Não gosto quando terminam com “né”. Toquinho e Vinicius entoaram: “Tem dias em que eu fico pensando na vida” e “a vida tem sempre razão”. Se não tem, quem pode discutir com ela? “Só sei que é preciso paixão”. Será? Não tem demais? Estava tudo confuso e isso não era novidade. O cara fez um comentário político. A mulher reclamou: “Política, não”. Ninguém aguenta mais”. Eu ia falar que não se vive sem política, coisa e tal, mas caiu um prato.


Toquinho repetia: “Na tonga da milonga do kabulutê”. Era isso. Não, é isso. Juntaram os cacos. Agora era Chico que cantava: “Estava à toa na vida”. A banda passou. Quando foi? Fiquei pensando nisso por um bom tempo. Daria para começar um conto. No dia em que a banda passou... A grande questão é sempre a origem: quando foi que tudo virou? Entortou? Bifurcou? Eu sempre me pergunto: quando foi que tomei a decisão de botar o pé na estrada? Era tão improvável, impossível mesmo. E o Belchior? O que se quebrou dentro dele? E nós: quando foi que perdemos o bonde, o trem?


Ficaram em silêncio. Creio que para ouvir música. A voz de Caetano Veloso me chegou como uma brisa: “Quem é você?” As respostas me desconcertavam. Eu só queria ouvir. Então me disseram: “Fala coisa com coisa”. Expliquei: falo por música. Riram. A primeira luz do amanhecer finalmente se infiltrou na peça. Poucas luzes são tão belas. Pode ser uma luz leitosa ou glauca. Pode ser um filete dourado se o sol estiver despontando. Pode ser uma ilusão produzida pelo desejo de muitas manhãs. É muito estranho acordar com a voz de Elis Regina lembrando “que eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”. Eu me espreguicei: sou velho. Sem comorbidades. Nem para a vacina dou. Foi um momento de autocomiseração. Fui beber direto na fonte antes do banho.


Deixei Belchior inundar a sala com a sua melancolia: “Gente da minha rua como eu andei distante”. O sol lambeu os livros sobre a bancada junto à janela. A manhã tinha a beleza da juventude. A avenida lá embaixo contorcia-se numa esperança qualquer. Belchior, velho errante Belchior, repetia: “Minha normalista linda ainda sou estudante da vida que eu quero dar”. Pensei em galos, noites e quintais e fui dormir mais um pouco.


Mas não foi possível. Já era enorme o barulho da infâmia: "Manuela D'Ávilla, ex-deputada federal pelo PCdoB-RS, usou as redes sociais para denunciar as ameaças de estupro que a sua filha, Laura, de 5 anos, recebeu. No relato publicado nas redes sociais, ela conta que também foi ameaçada de morte, após o pai de um aluno da escola da menina vazar uma foto em grupos de WhatsApp."


Aí não se está mais no terreno da ideologia ou da luta política. É pura ignominia, abjeção, barbárie, comportamento odioso. Aqui deve falar a cultura, a civilidade, a solidariedade, os valores, a humanidade.


Não há música que silencie essa estupidez.

 

 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Grandes crises

 O homem do século XXI acorda e se pergunta: o que houve? Corre aos jornais e atualiza-se. Está a par de tudo e ainda assim não encontra a resposta para o seu questionamento. Algo falhou. As democracias correm perigo. O extremismo mostra os dentes. A tolerância já não figura como ideal de vida. O antropólogo Roberto DaMatta diz que o Ocidente entende mais de ódio do que de amor e solidariedade. As fake news corroem um dos mais belos avanços tecnológicos, a internet. Um vírus enfatiza a nossa finitude e a nossa fragilidade. O que fazer?

A política não deixa de ser a arte de administrar crises. O problema é quando a política cria as crises para administrá-las. O mundo vive uma crise gigantesca: a covid-19. A solução mais racional seria quebrar patentes, requisitar laboratórios e produzir vacinas em regime de guerra. A vacinação homeopática que está sendo feita poderá chocar-se com um efeito de retardamento: ao começar a imunização do Grupo Y, dependendo do tempo de proteção do imunizante usado, o grupo X, vacinado em primeiro lugar, poderá já estar desprotegido. É o risco.

O Brasil vive crises econômica, política, de trabalho e judiciária. A Lava Jato, que colocou na cadeia empresários e políticos importantes, foi enterrada pelo Procurador-Geral da República. As mensagens entre procuradores e o então juiz Sérgio Moro, obtidas por um hacker e agora liberadas pelo Supremo Tribunal Federal à defesa do ex-presidente Lula, mostram comportamentos inadequados: combinações, o juiz orientando procuradores, tabelinhas, acertos que, se costumam acontecer, não deixam de comprometer certa ideia de imparcialidade. E assim se estraga um bom projeto e se compromete o que deveria ser exemplar. Os consequencialistas, aqueles que só pensam nos resultados, no caso, o combate à corrupção, desprezam esses detalhes. A noção de devido processo legal, contudo, é fundamental para o Estado de Direito.

Se o STF anular em série as condenações da Lava Jato, desmoraliza-se. Se passar pano para os deslizes da operação, apequena-se. Assim vai o país, que precisa de reformas tributária e administrativa. Mas não pode criar a ilusão de que elas resolverão tudo. A reforma tributária se justifica não só pela necessidade de simplificar um complicado sistema de pagamentos de impostos, mas também, ou principalmente, para diminuir a regressividade, mecanismo que faz, grosso modo, quem ganha mais pagar menos. A grande reforma a ser feita é a da diminuição da desigualdade, essa chaga histórica que mantém o topo tão afastado da base que esta não encontra elevador para subir e se aproximar um pouco que seja da posição superior.

      A grande arte consiste em equilibrar livre iniciativa com bons serviços públicos. Há exemplos mundiais bem-sucedidos. A Suécia é um deles. Não existe perfeição. Há com certeza a impossibilidade de transformar a imperfeição em sistema funcional. Um grande país não se faz sem investimentos certeiros em educação, pesquisa e saúde. Diminuir recursos em pesquisa sob alegação de que falta foco não ajuda. Corrija-se o alvo, busque-se a meta, aposte-se na massa crítica em ação.

Auxílio emergencial – Se o Brasil não relançasse o auxílio emergencial, prometido para março, muita gente não teria como suprir as suas necessidades básicas. O governo federal, além de tudo, só tem a ganhar com isso, pois verá a popularidade do presidente da República melhorar. No passado recente, considerou-se que esse toipo de ajuda seria um modo de cativar eleitores em currais partidários. Na verdade, é uma forma de solidariedade que garante o mínimo de dignidade às pessoas vulneráveis e aquece a economia. Quem criticou agora descobre os benefícios.

      O parlamento tem fôlego para fazer reformas consistentes neste momento? Ou se contentará com remendos? O que faz o governo hesitar na retomada do auxílio emergencial? O homem da pandemia acorda com a sensação de repetição, vibra com o sol que banha a rua fazendo do cotidiano um quadro de Vermeer, sonha com a retomada da normalidade, lamenta o golpe militar em Mianmar, saúda as políticas salutares de Joe Biden, inquieta-se com as novas cepas do coronavírus, olha jogos de futebol na televisão com saudades do tempo em que se podia ir a estádios, maratona séries na Netflix e pergunta: onde foi que erramos?

Estamos, se arredondarmos, a um ano e meio das eleições presidenciais no Brasil. Os partidos já fazem as suas apostas. O DEM produziu a sua crise em torno da reeleição de Jair Bolsonaro e da eleição de Arthur Lira. Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados, fazia oposição ao presidente da República. Foi derrubado do cavalo por ACM Neto, presidente da sigla, que nega estar alinhado com Bolsonaro, mas não recusa estar com ele em 2022. O DEM sempre esteve no governo com Onyx Lorenzoni, Teresa Cristina e Luiz Henrique Mandetta. Se este ficou pelo caminho, os outros estão firmes e fortes. Muitas crises surgirão nos próximos meses. Dificilmente alguma abalará a convicção dos bolsonaristas na reeleição daquele que chamam de mito.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Minha casa, seu apartamento

 - … que eu fico vendo esse povo aí, apertado. Um em cima do outro feito caixa de sapato. Tudo empilhado.

- Que nada, isso é só um pequeno detalhe perto da comodidade e segurança.
- Que segurança que nada. Você acha que só de estar morando nesses pombais você está seguro? Que ninguém assalta apartamento?
- É, porquê? Não?
- Claro que não! A segurança do seu prédio é proporcional ao grau de instrução do seu porteiro.
- Put…que o par…
- É negão, se o seu porteiro é uma porta, se me permite o trocadilho, você já era; digo, seu apartamento.
- Put… merd… nunca tinha pensado nisso.
- É que eu sou gênio, então eu penso nessas coisas sabe…
- Mas mesmo assim, um sujeito que tém uma casinha, está sujeito – se você também me permite – a qualquer; e digo qualquer tipo de assaltante, é só ter uma casa sem ninguém durante um período do dia e pimba!
- Pimba!
- É, eu não sabia outra palavra… me deixa. O que acontece é que em prédios com porteiros, ainda que medíocres, você sempre tem “alguém” em casa para intervir e até mesmo pegar correspondências, ó só!
- Caixa de correio também pega correspondência.
- Mas não dá bom dia, boa noite…
- Não duvide!
- Qual é a questão então?
- Eu prefiro casa, liberdade de ir e vir. Eu gosto de poder abrir a porta e já estar no meu quintal, jardim, garagem, pegar o carro e passear ou mesmo a pé. Poder pular e gritar quando o meu time ganha o campeonato sem que alguém me interfone por causa do barulho. Eu gosto de poder receber meus amigos, dar uma festinha e terminar a hora que eu quiser sem ter nenhuma vizinha com filho pequeno no apartamento do lado que me ligue por causa da bagunça às 3 horas da matina.
- Ah, tá. Eu já, não; prefiro morar empilhadinho – tem mais calor humano – e sem quintal. Não tenho tempo pra cuidar de planta, mal sobra tempo pra mim! Aprecio o bom futebol mas por razões desconhecidas meu time é o Madureira. Receber amigos eu adoro, mas só para jantar; tenho 37 anos e vamos concordar que festinha não é bem o que eu costumo fazer, além do que, não posso beber nada alcóolico por causa do fígado.
- E se a vizinha com a criança ligar pra reclamar, o que você faz?
- Meu apartamento é um por andar…

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Pouco, muito, tudo.

 Outro dia, vi imagens de homens atravessando um riacho, com água pela cintura, ou acima dela, para levar material escolar a lugarejos nos confins do Brasil em tempos de pandemia de coronavírus. Parecia uma expedição minguada de desbravadores desgarrados dos sertões, algo como nas imagens do antropólogo Claude Lévi-Strauss descobrindo nossos territórios indígenas nos anos 1930. Na travessia recente dos carregadores de livros para alunos distantes havia um pouco de heroísmo e de melancolia nas cenas capturadas por uma câmera indiscreta. Lembrei de professores que fazem, muitas vezes, com sol ou chuva, cinco quilômetros a pé para lecionar na escola rural de sua localidade. Que paradoxo! Ou seria apenas uma triste contradição? O professor é tudo, a ele se destina muito pouco ou quase nada.  

Professor de ensino fundamental e médio no Brasil ganha pouco. Ganha obviamente menos que professor de país desenvolvido. Ganha quase a metade do que recebe o magistério de país que leva educação realmente a sério. Ganha menos do que colegas de outros países sul-americanos como o sempre citado Chile. Os ricos podem pagar mais e nós não? Será que realmente priorizamos a educação? Quem paga melhores salários a professores obtém resultados melhores com os alunos. Matemática simples e verificável na prática. Quem duvida só tem uma coisa a fazer: estudar o relatório 2020 da OCDE intitulado “Educação em relance”.  Um professor brasileiro, na média de ensino privado e público, ganha cerca de 26 mil por ano enquanto um europeu consegue em torno de 50 mil. Pesa muito.

Professores brasileiros ganham em média 13% menos que os chilenos. Na competição interna com outros profissionais com mesmo nível de formação, professor perde também: ganha quase 30% menos. Ser professor de ensino fundamental e médio exige um grande amor por uma atividade cantada em prosa e verso, louvada em discursos políticos, especialmente em época de campanha eleitoral, mas desvalorizada no relatório da hora da verdade: o contracheque. Legislação até existe. Só falta cumprir. Oito estados não pagam o piso fixado em norma federal. Tudo neste Brasil continental, em termos de educação, é diferente, exótico, instável ou utópico. Quase sempre para pior. As salas de aulas têm mais alunos do que fora daqui. É ônibus lotado.

Ficamos na primeira tabela, entre 32 países listados, quando se trata de números de alunos em sala de aula: décimo lugar até o quinto ano do fundamental; sexto lugar em aglomeração nos estágios do 6 e 9 ano. Como fazer ensino de qualidade quando se tem de lidar com um cotidiano sobrecarregado de dificuldades, de carências e de obstáculos? Não somos o país que mais paga impostos no mundo nem o que mais gasta com alunos por ano. Somos certamente um dos países a entregar um dos piores serviços pelos impostos arrecadados e a mal remunerar os professores de quem se espera a construção do futuro de nossos filhos e netos. Paga-se pouco, cobra-se muito e espera-se tudo.

    


terça-feira, 1 de setembro de 2020

Nem todo homem (mas todo homem)

Texto de Paty Cozer

@patycozer 

Nem todo homem acha que mulher que rebola até o chão é puta. Mas todo homem já foi incentivado a pensar assim.

Nem todo homem assobia para mulheres na rua. Mas todo homem conhece outro que faz isso.

Nem todo homem debocha do corpo de uma mulher. Mas todo homem reconhece esse comportamento em seu círculo de amizade.

Nem todo homem tem vergonha de chorar. Mas todo homem cresceu ouvindo que menino não chora.

Nem todo homem se considera o rei da selva, macho alfa e pegador. Mas todos são incentivados a agir como tal pelos familiares, pelos amigos ou pela mídia.

Nem todo homem vira para o lado e dorme depois de gozar, esquecendo que há outro ser humano ali. Mas todo homem é condicionado a pensar que tudo bem fazer uma dessas. Que tudo bem transar no automático.

Nem todo homem tem medo ou se sente ameaçado por uma mulher no ambiente de trabalho. Mas todo homem já viu uma colega sendo inferiorizada, chorando ou tendo que impor respeito.

Nem todos estão conscientes do quanto suas palavras e atitudes podem impactar. De como tudo aquilo que fazem chega até uma mulher.

Nem todos conseguem perceber a influência do machismo na própria trajetória. Alguns, infelizmente, jamais conseguirão olhar com carinho para seus pais, tios e avôs. Outros nem terão a chance de mergulhar em si mesmos, em busca de cura e de amor.

Mas eu não perco as esperanças.

Há homens fazendo o caminho inverso.

Há homens procurando terapia.

Há homens dispostos a equilibrar a balança.

Às vezes, confesso, me pergunto onde eles estão. Em seguida me lembro: não é fácil desabrochar. Não é fácil reconhecer que você passou boa parte da vida fazendo merda. Causando mal. Para pra pensar: quantas mulheres você já magoou, feriu, diminuiu e fez chorar?

Tá tudo bem. A dificuldade de vocês é a minha também.

Ninguém quer admitir que foi (ou é) algoz.

Mas quanto antes um homem reconhecer o desequilíbrio no seu próprio ser, maior a chance de uma cura coletiva acontecer.

Por isso, coragem, homens, Vocês têm esse poder.

A energia masculina que habita em mim acredita desesperadamente na que habita em você.

sábado, 22 de agosto de 2020

Verdade e Mentira

 Um dia a Verdade e a Mentira se encontraram. A Mentira diz à verdade: "Hoje está um dia maravilhoso!"A Verdade olha para o céu, desconfiada, e suspira, pois o dia estava realmente lindo. Elas passam algum tempo juntas, chegando finalmente a um poço. A Mentira diz à verdade: "A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!"A Verdade, mais uma vez desconfiada, testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Elas se despem e começam a tomar banho. De repente, a Mentira sai da água, veste as roupas da Verdade e foge.

A Verdade, furiosa, sai do poço e corre para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.

O mundo, vendo a Verdade nua, desvia o olhar, com desprezo e raiva.

A pobre Verdade volta ao poço e desaparece para sempre, escondendo nele sua vergonha. Desde então, a Mentira viaja ao redor do mundo vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade. Porque o mundo não nutre o menor desejo de encontrar a Verdade nua.

                                                                                                             Parábola judaica

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Pessoas magras mentem

Esse é um tempo de magros. Dias atrás, reencontrei um amigo que não via há anos e ele estava com sua esposa que está grávida! O João vai ser pai. O que significa que serei "tio". Cumprimentei- o, dei-lhe um forte abraço e bati em suas costas taptap, e de repente lhe disse:

— Pô, tu estás mais magro.

O rosto do João resplandeceu como se ele tivesse uma lanterna pendurada no queixo. Sorriu seu melhor sorriso, um sorriso de 28 dentes. Baixou os olhos para a barriga e a apalpou.

— Acha mesmo? — perguntou-me, incrédulo.

Eu:

— Acho, ué.

O João inflou o peito:

— Muito obrigado!

Obrigado, agora vê. Digo para um sujeito que ele está magro e ele me agradece. Ou seja: magreza é elogio. Quer agradar alguém? Diga:

— Você é uma pessoa magra.

Quer conquistar uma mulher?

— Para mim, você é a pessoa mais magra desse mundo. Nunca existiu uma pessoa tão magra como você, na minha vida.

Quer lhe dar votos de bom Ano-Novo?

— Desejo muita magreza para você em 2021.

Não era assim, antes. Minha avó vivia comentando:

— Encontrei o Tibúrcio, ontem. Está gooordo, boniiito. — Desse jeito, com três ós e três is. Eu podia imaginar o Tibúrcio, redondinho, vermelho e sorridente, a prosperidade de calça de tergal e suspensórios.

Só que tem o seguinte: os magros mentem. Não todos os magros, verdade, mas os ex-gordos. Você se encontra com um amigo que era gordo, e se surpreende — o cara está que é só o couro e o osso. Só o buraco e catinga, de tão magro. Espanto:

— Nooossa, que regimão, ahn? O que você deixou de comer?

Aí, sabe o que ele diz? Que come de tudo! Jura que não deixou de comer nem carnes, nem doces, nem massas, nem mesmo torresmo. Daqueles bem crocantes acompanhando uma cerva estupidamente gelada.

— É que tenho feito muito exercício — se exibe o ex-gordo.

CONVERSA! O ex-gordo está sofrendo, está passando a alface e chicória e água mineral. Sem gás. Pobre ex-gordo, tudo o que ele queria era um medalhão de picanha gorda, uma panela de feijoada, uma barra de chocolate, um bombom com licor, um quindão, que ex-gordo adora doce.

Por que, então, ele mente? Deixa que respondo: por vergonha. O ex-gordo tem vergonha do preço que paga para satisfazer a própria vaidade. A vaidade só é explícita quando é barata.

domingo, 26 de julho de 2020

Florestan Fernandes, Cientista Social e Cidadão (Mestre faria 100 anos em julho/2020)

Florestan Fernandes nasceu em 22 de julho de 1920 na cidade de São Paulo e faleceu em circunstâncias dramáticas, por erro médico em 1995. Não era filho nem da alta, nem da pequena burguesia. Órfão, trabalhou desde a infância para manter a si mesmo e à mãe. Seus estudos básicos foram muito prejudicados por essa razão: não completou o primário e teve de fazer o curso supletivo porque não pôde cursar o secundário. Apesar da vida pessoal e familiar difícil e de formação básica precária, ou talvez por causa disso mesmo, chegou à universidade aos 21 anos. Entre 1940 e 1951 fez licenciatura e bacharelado em ciências sociais, na USP, e o mestrado e doutorado em sociologia e antropologia na Escola Livre de Sociologia e Política. Em 1953 tornou-se livre docente e, em 1964, professor catedrático da USP. Florestan Fernandes escreveu reflexões teóricas acerca das ciências sociais e pesquisas sobre a integração do negro na sociedade de classes. Enquanto professor da USP foi professor e mentor de vários intelectuais e cientistas sociais como Fernando Henrique Cardoso, O. Ianni, E. V. da Costa. Em 1969, foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar, revelando-se um dos intelectuais mais lúcidos e críticos do regime militar. Foi professor visitante nos EUA e Canadá. Como militante político, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e se elegeu deputado federal.

Considerado o patrono da sociologia no Brasil, Florestan Fernandes defendia uma sociologia militante. Para ele, o sociólogo é um cientista e cidadão. Podemos verificar isso em todas as suas obras nas quais sempre se posiciona com forte visão marxista. Seu pensamento é radicalmente crítico e quer apreender de fato a realidade brasileira no que ela tem de mais peculiar. Sua maior obra foi A Revolução Burguesa no Brasil (na busca de uma formação decente, li, reli e releio) na qual designa o processo de consolidação do capitalismo no Brasil, ou seja, a revolução burguesa no Brasil seria um conjunto de transformações econômicas, tecnológicas, psicoculturais e políticas que implantaram no Brasil a ordem social capitalista.

Na sua visão radical do Brasil, a categoria que mais caracteriza a especificidade do processo histórico brasileiro é a da escravidão. Ela deixou marcas profundas nas relações sociais e na cultura do país. Florestan Fernandes examina o tema pelo aspecto da resistência do escravo, a sua rebeldia e a sua capacidade de transformar a sociedade brasileira. O tema da escravidão passada ligava-se ao da "revolução social"que viesse abolir as desigualdades sociais no presente-futuro. Discutir o tema da escravidão no passado significava lutar pela concretização da sua abolição no presente-futuro. 

Apesar de ter pesquisado e conhecido profundamente a dura realidade, Florestan Fernandes termina sua análise ainda otimista e utópico. Sonha ainda com uma sociedade brasileira integrada racionalmente, emancipada, autônoma, livre, independente e moderna, desenvolvida, democrática, avançada objetiva e subjetivamente. E para ele, o sujeito criador desse Brasil novo não será a burguesia brasileira, que, por ser dependente, é basicamente egoísta e autoritária, mas o proletariado e o campesinato, as maiorias excluídas - mulheres, negros, crianças, estudantes, enfim, os cidadãos brasileiros. 

No país do desembargador que dá carteiraço em francês e, quando questionado por colegas mulheres, vê os processos arquivados misteriosamente, as utopias de Florestan Fernandes são letras mortas. Ainda não enterramos nosso passado patriarcal, machista, escravista e elitista. As reformas de base também não se consumaram. O Brasil continua continua a ser um projeto incompleto de modernização e igualdade.

Ressentimento e grupo: Uma anedota para se entender o comportamento político

  Sabe aquele ditado: “os inimigos dos meus inimigos meus amigos serão?”. É sobre isso que se trata o ressentimento político que afeta o com...